17.12.09

Traídos pelo Desejo

Há desejo sem traição? 

“Um escorpião quer atravessar um lago, mas não sabe nadar. Então pede ao sapo que o leve nas costas até o outro lado. O sapo nega-se a fazê-lo, pois lembra que o escorpião pode aproveitar-se da situação e, com uma ferroada, feri-lo mortalmente. O escorpião responde que nunca tomaria semelhante atitude, já que, nesse caso, os dois morreriam juntos, afogados. Seguro pelo argumento lógico, o sapo decide atravessar o escorpião, e este, no meio do lago, lhe aplica uma ferida mortal. O sapo então pergunta: - “Por quê você fez isso? Agora nós dois vamos morrer.” O escorpião retruca: - “Não posso não fazê-lo. Essa é a minha natureza.”

Tudo isso por que o tema de hoje é DESEJO.
Eu acredito que o risco do desejo é que ao ser seduzido, o sujeito se entrega de tal forma que perde o controle.
O desejo é tão traidor, que a psicologia tem dedicado seu máximo esforço sem conseguir, até hoje, encontrar o elemento que o organiza. Caso ele pudesse ser descoberto, conseguiríamos, pelo menos, controlá-lo. Poderíamos, por exemplo, inventar um remédio eficiente contra a depressão, contra decepção profunda, contra a autoflagelação, contra a tristeza causada por se desejar o que não se pode ter. Os antidepressivos que existem por aí, evitam bioquimicamente a tendência ao martírio, porém nada fazem quanto ao modo de desejar. Ou seja, você pode até não vir a se matar, mas o desejo permanece lá.
Seria legal se Deus tivesse nos criado com alguns botões onde pudéssemos nos controlar. Mas infelizmente isso não existe, muito pelo contrário. Fomos criados para desejar mesmo sabendo que esse mesmo desejo pode nos matar. Que ironia!
Outra coisa que penso é que no entanto, fundamentalmente o desejo caracteriza-se por não ter fundamento nenhum, apenas acontece com qualquer um em qualquer lugar e em qualquer idade.
O desejo também confunde-se com a ação sem ser o próprio ato. Ou melhor, pode ser visto como as ações de declarar, prometer, descrever, ordenar, aceitar, recusar, tocar, caminhar, beijar, fazer carinho, levantar o braço, puxar uma cadeira, convidar, fazer propostas, negar-se a fazer algo e etc.
Todas essas ações não são o desejo, certamente; porém o desejo é incompreensível sem elas, e elas, incompreensíveis sem o desejo. Está me acompanhando? Se não, recomece a leitura.
O desejo, portanto, confunde-se com a ação sem ser ela mesma. A ação pode ser uma demonstração do desejo. Outra coisa, ninguém sabe com certeza que atitude tomaria frente a uma informação relevante, a um fato inesperado, a uma traição, a uma situação de perigo e etc, mesmo que possa declará-lo antecipadamente muitas vezes, e tentar, com isso, assegurar-se de sua retidão moral. Eu disse ninguém!
Voltemos ao sapo e o escorpião. A ação do sapo ao carregar o escorpião nas costas é de desejo.
A ferroada dada pelo escorpião também.
Quanto aos fatos, não há dúvida. O problema dessa história é a questão ética. Não nos parece bom, nem útil ou proveitoso a ação de seduzir desejar para matar. Fizemos leis para punir as pessoas que agem assim, e nenhum de nós está disposto a relaxar essas leis.
O escorpião seria julgado por homicida caso sobrevivesse ao afogamento. O sapo, porém, não poderia negar que agiu porque quis. Pode alegar que foi enganado, que foi a vítima de uma armadilha mortal, e que foi traído pelo desejo. Porém, não pode negar que desejou, porque há uma ação, a de carregar o escorpião nas costas.
Mas você não concorda que as ações (e os desejos) estão ligados a uma rede tão complexa de correlações com outras ações passadas e presentes, assim como também a projeções de futuro (intenções ligadas a intenções), que dificilmente alguém se dá conta do peso real do ato de desejar?
Seu desejo por algo é a influência de milhares de coisas e se dá em um nível muito particular. Eu não consigo entender plenamente o que se passa na cabeça de quem desejou e vice-versa..
Mas nós, pobres mortais e criaturas insignificantes em comparação com todo o indiscritível universo, ficamos sempre na tentativa de controlar o desejo, para que nos sintamos mais seguros, e resistimos em aceitar as implicações do nosso desejo.
A resistência não é mais que a tentativa de sentir-se seguro diante do abismo infinito. Resistir é diminuir, com alguma desculpa sem muito sentido, as implicações aparentemente incontroláveis do desejo. Desejar, portanto, é arriscar-se!
Negar-se ao risco ou a entregar-se em algum momento, é tentar controlar o incontrolável.
Sem consciência e sem querer, às vezes, você é o escolhido para sentir todos esses sentimentos.
Voltemos ao Sapo. Para o caso do sapo, o segredo ali não deveria ser a responsabilidade de negar o desejo, mas adquirir um certo grau de sabedoria para decidir quando se deveria aceitar entrar em relação com alguém tão perigoso. Mas o Sapo como todo bom humano sempre está disposto à abertura. Aí, depois de todo esse bla, bla, bla, chego na pergunta cruscial:
Como evitar a destruição e a morte certa causadas pela vontade sem controle?
O escorpião que diz “essa é a minha natureza”, mostra claramente que perdeu a sua vontade, que não tem mais a posse de um “eu”, que foi desalojado, pelo impulso, da sua própria fala como dono da sua vontade. Importante salientar que a fala do escorpião, o “eu” é a natureza, não o seu querer. Entende isso?
Mas a falta de controle da sua vontade e do seu desejo significa, porém, a morte de todos. Para sobreviver à guerra das vontades que nos sobrepujam só há um remédio: usar uma máscara e acreditar nela! Olha só.. e eu é que era contra a falsidade há tão pouco tempo atrás....
Daí para frente, basta reavaliar cada tipo de auto-engano e retomar a fala do eu que não quer morrer. A fala é uma ação, agir é desejar.
O escorpião afogou-se somente porque deixou que outro falasse por ele sem qualquer intervenção do eu que não quer morrer.
O escorpião não se ligou que não podemos ter tudo que queremos, mas sempre podemos ter o melhor daquilo que já possuímos.

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