21.11.10

A Gente se Acostuma, Mas não Devia

Todos sabemos. A gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos apertados, com vistas horríveis e cercados de janelas ao redor. E, por não ter uma vista bonita, logo nos acostumamos a não olhar para fora.
E, porque não olhamos para fora, logo se acostumamos a não abrir as cortinas. E, porque não abrimos as cortinas, logo se acostumamos a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostumamos, esquecemos do sol, esquecemos do ar, esquecemos da lua, esquecemos do milagre da vida que passa todo dia diante do nosso nariz.
A gente se acostuma a acordar de manhã, na correria, porque estamos atrasados. Tomamos o café correndo tentando lembrar ao certo o que aconteceu na noite anterior.
Ligamos o rádio no canal de notícias ao entrar no carro, porque não podemos perder tempo nos congestionamentos. A gente se acostuma aos congestionamentos, a passar horas no trânsito, a comer sanduíche porque não dá tempo para almoçar.
Nos acostumamos a sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque estamos cansados. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a achar que tudo é o que é. Que não existe amor verdadeiro, que é melhor estar mal acompanhado do que só.
Nos acostumamos com a mal educação de nossos filhos, com a desobediência alheia.
A gente se acostuma a ver noticiários sobre guerra, assassinatos, drogas, roubos, violência. E, aceitando a violência, aceitamos os mortos e que haja mesmo números para mortos. A gente se acostuma a achar normal...
E, aceitando os números da violência, ainda, aceitamos não acreditar em mais nada. E, não acreditando em mais nada, aceitamos ler todo dia os noticiários, e a aceitar que alguém está sofrendo, morrendo, pedindo, se drogando, passando fome.
A gente se acostuma a ver o sofrimento alheio e achar normal. A gente se acostuma a tirar da vista o que incomoda e a pensar que o que importa é só o EU.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro passar e ouvir no telefone alguém dizer: "desculpe, hoje não posso ir, hoje não quero."
A gente se acostuma a sorrir para as pessoas e dizer "bom dia", sem receber um sorriso e um "bom dia" de volta.
A gente se acostuma a ser ignorado quando precisávamos tanto ser vistos.
A gente se acostuma a ser colocado para baixo, a aceitar a impossibilidade, a não acreditar.
A gente se acostuma a lutar para ganhar dinheiro, mesmo que seja a luta mais árdua, pesarosa e mais terrível do dia. Tudo para poder comprar o que se necessita, e mais ainda para comprar o que se acha que se precisa.
A gente se acostuma a ganhar menos do que precisa. A aguentar fila para pagar. A ser maltrado depois que se compra, e a pagar mais do que as coisas valem.
Nos acostumamos a ver as coisas serem substituídas a todo momento. A gente aceita que a troca da lanterna do modelo do nosso carro seja o motivo de sua desvalorização, e aí procuramos mais trabalho, mais promoção no trabalho, mais desafios e menos tempo para a vida. Tudo com o intuíto de ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar no modelo novo que só mudou a lanterna. E aí enfrentamos filas, pagamos, somos maltratados...
A gente se acostuma a andar na rua e ver publicidade aos montes. A abrir as revistas e ver milhares de anúncios. A ligar a televisão e assistir a diversos comerciais. A ir ao cinema e engolir o que decidem passar.
A gente se acostuma a ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável lista dos produtos com "lanternas novas".
A gente se acostuma a ver a cidade, monumentos e prédios históricos pichados. A ver os ônibus depedrados, riscados, mal cuidados.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial e ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios e do planeta.
Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a ter medo dos bichos, a aceitar que extinção de espécies seja normal.
Se acostumamos a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta em casa. E se temos, nos acostumamos a vê-las morrer.
A gente se acostuma a achar que tudo o acontece não tem nada a ver com a gente e a gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e não liga para o torcicolo. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e volta para a cerveja.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito, afinal temos sempre o sono atrasado.
A gente se acostuma com nossa morte à conta gotas. Se acostuma a ser egoísta na forma de viver e pensar. Se acostuma a se lançar na bebiba e em outras substâncias para aliviar o sofrimento. Se acostuma a achar que precisamos ser sempre o melhor e ser o que a maioria é.
Se acostumamos com o óculos de sol, com o protetor solar, com o chapéu, e com as rugas que aparecem mesmo tentando proteger a pele.
A gente se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e se perde.

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